O Silêncio da Pedra

Em uma noite onde a lógica apontava para sua queda, Alex Poatan não precisou de discursos. Apenas de um golpe. A crônica da consagração de um caçador no topo do mundo.

Por Jardel Cassimiro, para a Revista Correio 101

O som oco durou uma fração de segundo. Foi o tempo exato entre o punho esquerdo de Alex Pereira encontrar o queixo de seu adversário e o corpo do gigante russo desabar sobre o tablado, como uma estátua cujo alicerce foi implodido. Por um instante, os vinte mil espectadores na arena de Las Vegas prenderam a respiração. O árbitro, uma sombra veloz, mergulhou entre os dois homens, mas o gesto era protocolar. A luta já havia acabado. Poatan se ergueu, não com o urro explosivo de um campeão, mas com a calma ritualística de quem acaba de cumprir seu destino. Ele já sabia.

Para chegar àquela noite, o brasileiro havia caminhado por um deserto de descrença. Do outro lado do octógono, Magomed Ankalaev não era apenas um oponente; era a personificação da lógica, um mestre da luta agarrada vindo do Daguestão, programado para neutralizar e sufocar. As casas de aposta, os especialistas, a matemática fria do esporte — tudo apontava para o fim do reinado do caçador. A narrativa era simples: a força bruta de Poatan, por mais temível que fosse, seria engolida pela técnica sufocante do oponente. Era o roteiro da inevitabilidade.

O primeiro round pareceu confirmar a profecia. O corpo de Pereira, amarrado contra a grade e depois levado ao chão, era a imagem da impotência. A arena assistia ao monólogo de Ankalaev, um controle físico que drenava a energia e a esperança. O campeão parecia, pela primeira vez, humano, vulnerável. O intervalo entre os assaltos foi tenso. As câmeras focavam um rosto impassível, de traços indígenas, que ouvia as instruções de seu córner. Não havia pânico em seus olhos. Havia leitura.

O que se viu a seguir foi uma aula de adaptação. Poatan, que antes era o alvo, voltou a ser o caçador. Ele não buscou a trocação franca; ele começou a minerar a base do adversário. Seus chutes, baixos e duros, soavam como machadadas na coxa de Ankalaev. Cada golpe era um investimento, uma mensagem enviada ao sistema nervoso do russo, quebrando seu ritmo, minando sua confiança para encurtar a distância. A estátua começava a apresentar rachaduras. O medo, antes uma arma de Ankalaev, trocava sutilmente de lado.

Então, veio o momento. No terceiro round, em uma troca de golpes curta, quase discreta, Ankalaev cometeu o erro de piscar. A mão esquerda de Poatan, apelidada de “pedra”, viajou numa trajetória curta e perfeita. Não foi um soco teletransportado, mas um golpe plantado com a precisão de quem conhece a anatomia do nocaute. O som, o colapso, o silêncio. Tudo em um piscar de olhos.

Quando o cinturão de ouro foi novamente afivelado em sua cintura, Alex Pereira mal alterou a expressão. A mão que derrubou a lógica repousava ao lado do corpo, quieta. Ele agradeceu a seus deuses, a seu povo Pataxó, e falou poucas palavras ao microfone. Não precisava de mais. Naquela noite em Las Vegas, o barulho pertencia ao mundo. A ele, bastava o poder do silêncio que sua pedra foi capaz de impor.

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